sábado, 23 de agosto de 2014

A CONCEITUAÇÃO TEOLOGICA DA ADORAÇÃO BÍBLICA

Deus estabelece, do nada, tudo o que há (Gn 1;1). Esse Deus, supremo criador, passa a por ordem no caos (Gn 1, Sl 74) em proporções universais. Os relatos da Criação nos dois primeiros capítulos de Gênesis mostram uma organização, um controle diretivo e não somente potencial.  Deus levou seis dias para criar o mundo. Toda a Criação, todas as coisas que existem, existiram ou existirão, foram planejadas e projetadas por Deus ali naquele instante[1] chamado eternidade. Todas as implicações, conseqüências, desdobramentos, foram antevistos, perscrutados, analisados, compreendido e solucionados.  Deus, antes do start do κσμου, conheceu, predestinou, providenciou e uniu em Si mesmo, todas as coisas, acontecimentos e possibilidades, começo, meio e fim (cap. III, A Bíblia e o Futuro, Antony Hoekma, Cap. I, cânones de Dort, I Co 2;7). Há um método, uma ordem, um motivo, há um propósito
.
Tudo que foi escrito deve ser entendido na perspectiva humana, como um relato, a intenção é de contar a história para alguém, e com isso formar algumas ideias. Gênesis é o início da revelação de Deus e não o início do relatório científico[1] da criação. Ao ouvir por que as coisas foram criadas, e por quem (יְהֹוָה  Yehovah - IHWH - Jeová, Javé, Iavé ou Yahweh), é presumível, não só a admiração, mas que um forte senso[2] de cuidado seja instalado no coração do homem.


É exatamente por isso que ao questionar a afirmação de Deus ter criado tudo, vemos expressões como “A Morte de Deus” ou “O Homem que matou Deus” – afinal, sem um criador, somos órfãos, filhos de chocadeira, “não há ninguém lá em cima que olhe por nós”.
Deus ao colocar no cânon, o Início (Gênesis), quer com isso se revelar, não só como o Deus Único, criador de tudo e todos, mas também, apresentar-se como o poderoso Deus que escolhe, institui e preserva o povo de Israel. Gênesis tem o propósito de gerar naqueles que saíram da terra de escravidão uma identidade nacional, transformando um bando de parentes em uma nação.
Uma nação só existe com o estabelecimento de um poder – a Constituição, por exemplo, é o poder máximo do estado de direito – nos tempos de Moises esse poder poderia ser um deus, um patriarca, um poder militar, etc. algo que servisse de elo. Deus, através de Moises, progressivamente estabelece esse Estado, reivindicando para si a autoridade magma. Deus é em última instância o poder máximo da nação Israel, por isso é nEle o valor de Israel como um povo (Is 41;8,14), o valor da nação reside em Deus, o criador.
Embora Deus, o criador, é quem prometa a Abraão fazer de sua descendência uma grande nação, e que o Pentateuco conte a saga dele e de seus descendentes. Os 5 livros não foram escritos com o propósito final de serem para o povo somente relatos históricos ou documentos do poder público (códigos civis, penal, religioso, etc.). Os livros registram o estabelecimento de um pacto, entre o Deus e o homem, IHWH e Adão. Por isso no V.T. não aparece a ideia de Deus-Pai e sim de Deus-Criador. A relação é contratual, tem-se a descrição das cláusulas do contrato (obediência, construção da arca, circuncisão, etc.) e suas observações na vida. Aparentemente cumprindo todas as legalidades, alguém poderia afirmar ser adorador de IHWH (Jo 8;31 a 47), com essa compreensão, que é ainda limitada, veríamos os termos adoração, culto, liturgia, serviço religioso, reverência e religião exatamente como os fariseus, somente como normas, leis, regras, circunstâncias, festas e datas (Is 29;13). Nessa visão estabelecer linhas diretas e negar qualquer desvio fica realmente muito fácil.

No pacto:

É imposto, então, clarificar no V.T. e no N.T., na antiga aliança e na nova, a adoração, e na acepção pactual elaborar uma compreensão ainda mais completa da Adoração Verdadeira, para então, de posse dessa conceituação bíblica, progredir na proposta temática.
Dentro das doutrinas reformadas a relação entre Criador e criatura é entendida como um contrato, um pacto. Com Adão no paraíso foi assim. Deus criou o homem segundo a sua imagem e semelhança. Deus, o Senhor, colocou Adão, o servo, no jardim do Éden para cultivá-lo e guardá-lo e o orientou sobre como deveria ser o seu procedimento ali (Gn 2, 4 a 25) expondo as consequências de violar essas condições.
A cláusula desse contrato que trata das punições (consequências) do descumprimento de algum de suas partes (v.17), é exatamente o que obriga o ser humano a uma vida distante de Deus, longe do paraíso, expulso da presença divina, ou seja, o Pacto vigora! Com Noé (tipo de Cristo), como agente do pacto, foi diferente[3], a sua obediência o tornou uma benção para toda a criação. Com Abraão (outro tipo de Cristo) também, ele creu e isso lhe foi imputado como justiça, e nele todas as nações da Terra seriam abençoadas, a sequência dos patriarcas confirma essa continuidade do Pacto com Adão (o homem).
Êxodo, então, passa a contar a libertação da escravidão imposta pelos egípcios aos descendentes de Abraão – que é descendente de Sen, filho de Noé, descendente de Seth, o filho de Adão, o homem. O povo de Israel, por sua vez, é introduzido como agente desse pacto, reafirmado por Deus, que passa sistematicamente a criar um Estado que vivesse sob a égide dessa revelação. Todo o V.T. é baseado no cumprimento das cláusulas que foram anunciadas por Deus no monte Sinai.
Ao considerar as revelações do N.T. (Novo Testamento) sobre o Pacto no V.T. temos uma visão ainda mais clara de sua continuidade proposital. Daí o sacrifício de Cristo, não só é a continuação pactual – como foram Adão, Noé, Abrão, Moises, Davi, Salomão, Daniel, Esdras e etc. – como de fato é o cumprimento pleno desse Pacto. É o sacrifício de Jesus que validou a adoração sob a Lei (sacrifícios e correlatos) e o que valida a adoração da Igreja (adoração atual). Nisso exclui-se a possibilidade de duas realidades ou dispensações: Lei versus Graça. Há uma única verdade: por meio de Cristo, todos, quer judeus, gregos, troianos ou goianos, são unidos a Deus, em Cristo, e somente em Cristo pode-se adorar ao SENHOR (cap. XXI, CFW).
Adoração a Deus é um relacionamento proposto, providenciado, mantido e possibilitado por Deus, e em última análise, consumado por Cristo.  O sacrifício de Jesus é o que validou a adoração sob a Lei (sacrifícios e correlatos) é o que valida a adoração da Igreja (adoração atual). Assim, exclui-se a possibilidade de duas realidades ou dispensações. Há uma única verdade: por meio de Cristo, todos, quer judeus, gregos, troianos ou goianos, são unidos a Deus, em Cristo, e somente em Cristo pode-se adorar ao SENHOR (cap. XXI, CFW).
 Analisando a resposta de Jesus ao questionamento sobre a validade do culto tradicional dos samaritanos (Jo 4;21), tem-se uma ampla visão de como para ele a adoração a Deus era central em seu ministério. A mulher, que por ‘acaso’ se encontra com Jesus no poço de Jacó, quer saber aonde era o local certo para adorar (prestar culto) a Deus, no monte Gerezim, o local perto de Sicar onde durante séculos os samaritanos adoravam e ofereciam seus sacrifí­cios ou no Templo de Jerusalém.
Jesus desconsidera essas duas possibilidades declarando que somente “em espírito e verdade” os verda­deiros adoradores adorarão (se submeterão) o Pai (Jo 4;23). É interessante perceber a introdução dessas restrições[4] na adoração. Cristo afirma que somente os verdadeiros adoradores adoram realmente ao Pai, pois só eles O adoram em espírito e em verdade. É claro, que nesse contexto, Cristo fala da inauguração do Reino da Graça, o tempo chegado aonde esse tipo de adoração acontecerá, isso nos faz entender que a adoração verdadeira só é possível através de Cristo (Cap.XVI, CFW).
É razoável pensar que se existe a adoração em espírito e em verdade, existe, também, uma adoração carnal e falsa. Cristo ao qualificar como espiritual e verdadeira a atividade dos adoradores procurados por Deus (Jo 4;23) faz clara distinção destes com os dois outros grupos em discussão.
Analisando esses dois grupos, judeus e samaritanos, percebem-se alguns princípios que se seguidos não faz automaticamente de alguém um adorador verdadeiro: historicidade. Ambos, judeus e samaritanos, faziam o culto assim há tempos, era, não só, costume, mas também cultura – claro que com pesos diferentes para cada grupo; prescrição. Para os judeus, o sacrifício no Templo era a clara e inquestionável observação a Lei de Deus, embora, tanto essa “observação” como essa “lei de Deus” tenha sido questionada pelo próprio Deus; localidade. Havia razões pelas quais se adorava a Deus nesses locais: O monte Gerazim foi palco de acontecimentos importantes da revelação Divina, e o Templo, embora tenha sido até essa ocasião, refeito duas vezes, segue de alguma forma – “de alguma forma” ideia melhor explicada mais a frente – a prescrição para ser o Tabernáculo ou morada de Deus entre os homens; sinceridade. Seria imprudência nossa pensar que os samaritanos iam ao monte adorar a outro deus, ou que o faziam sem algum grau de devoção, da mesma maneira para com os judeus no Templo, embora houvesse ali às portas do Templo, charlatães, especuladores e ladrões a grande maioria realmente tinha um sentimento de religiosidade.
E importante, ainda, recordar que Jesus não afirma que os samaritanos não adoravam a Deus, ao contrário, eles O adoravam, só não conheciam! O rev. Russel Shedd (1987) afirma que “Mais do que inútil é o culto que desconhece Aquele a quem de­vemos submissão e lealdade. Por isso, o grau de beleza de um culto, o número de adeptos, ou a sua antiguidade, não tem importância se o adorador não estiver em contato vital como Deus único”. Por fim a afirmação de Jesus “a salvação vem dos ju­deus”, provavelmente fazendo referência as numerosas profecias do A.T. ao próprio respeito, trata do fato de Deus revelar a salvação primeiramente a Israel (Rm 9;4) e não de qualificar adoração dos Judeus como melhor ou mais aceita do que a dos samaritanos.
A adoração aceitável não está baseada em nenhuma observância legalista. Homens como Abel, Enoque, Noé, Abraão, Moisés obtiveram bom testemunho pela fé (Hb 11). Eles adoraram segundo os padrões de Deus, isto é, de acordo com os mandamentos de Deus, esperaram contra a esperança e contemplaram de longe o objeto da sua fé, pois eles entenderam que a promessa – remissão em Cristo – era de uma pátria superior (v.16). Para eles não tinham sido entregues os 10 mandamentos e nem as leis cerimoniais, eles não observavam datas e épocas do ano e não havia um edifício consagrado ao Senhor. Eles obtiveram bom testemunho pela obediência a uma lei maior, uma lei que deve ser, como foi para este, o parâmetro para adoração da Igreja Cristã.

Cláusula primeira:

Jesus esclarece qual era essa lei maior. Quando perguntado sobre qual era o maior mandamento, ele, afirma que a grande lei que os homens devem seguir é amar a Deus de todo o coração. Ele não citou um dos 10 mandamentos, ele não considerou o decálogo como fonte do maior mandamento. Cristo sita uma passagem de Deuteronômio 6;5. Para Jesus, a ordem maior que Deus impõe ao homem é amá-lo e por isso servi-lo de todo o coração, de toda a alma e de todo o entendimento.
Esse amor a Deus deve ser entendido como a acepção verdadeira da adoração exigida e – claro – possibilitada por Deus (Ex 20;6). Duas razões podem ser levantadas para sustentar essa afirmação: Cristo afirma que essa é a Lei de Deus, o mandamento máximo divino, a razão pela qual os seres humanos existem, o propósito da criação. Amar a Deus é o objetivo que o Criador estabeleceu para o ser humano, é um decreto imutável do Senhor (item V, cap. III CFW, livro I, cap. I, IRC). A segunda razão é teológica. A expressão do ‘caput’ da lei prescrita é similar ao entendimento do encadeamento etimológico[5] abstraído no N.T. e na LXX.
O termo traduzido por amar é γαπσεις que foi utilizado na LXX para traduzir o verbo  אָהֵב אָהַב  ('āhēḇ 'āhaḇ); do hebraico (cerca de 200 ocorrências). Esse termo em hebraico foi utilizado para descrever o sentimento de Abraão pelo seu filho Isaque (Gn 22;2), o amor de Jacó por Raquel, pelo qual trabalhou sete anos (Gn 29;18), e a amizade profunda de Jonatas e Davi (I Sm 20;17). O verbo traz a ideia do amor incondicional, altruísmo. A maior lei de Deus manda que ao homem O ame mais do que a si mesmo, que considere o Senhor mais importante e digno de atenção e reverência, o principal, o primeiro, a quem todas as coisas devem ser oferecidas primeiramente, em detrimento de si mesmo, a despeito inclusive de faltar para si.
Mas Jesus acrescenta que esse mandamento se traduz, também, numa atitude de amor para com o próximo. Ele cita Lv 19;18, afirmando que amar ao próximo como a si mesmo é o segundo mandamento, semelhante (aquilo que se parece ou é próximo de...) ao primeiro. Os mesmos termos são usados no segundo mandamento de Jesus. A segunda maior lei de Deus é tratar o outro como a si, da mesma maneira que alguém si ama deve amar ao outro, buscar o bem do próximo com o mesmo cuidado e determinação dispensados na busca do bem para si mesmo. A ideia não é “meu direito acaba aonde começa o do outro”, forma passiva, mas “meu dever é o direito do outro”, forma ativa. E mais, essa lei tem uma importância maior. Amar (γαπν) ao próximo é mais importante que todos os outros mandamentos, ficando diretamente abaixo de amar (γαπν) a Deus. Não se pode – não aqui – entender essa passagem de forma simplista. Jesus não está simplesmente resumindo os 10 mandamentos em 2, como sugerida pela explicação clássica – boa e correta, porém curta – de que “amar a Deus...” é o resumo dos 4 primeiros mandamentos e “amar ao próximo...” dos 6 seguintes.
Cristo afirma, peremptoriamente, que estes dois mandamentos são os que dão base a tudo que a Lei (Torah) regulamenta, e por causa deles os Profetas trouxeram julgamento e condenação às nações (Is 1;2).  Provavelmente os fariseus que perguntaram a Jesus qual o maior mandamento, queriam usar a resposta dele como arma para questioná-lo e por fim acusá-lo de falta para com alguma lei ou interpretação da lei (Mc 14;55, Jo 8;6). Eles não estavam interessados em ouvir uma hierarquização da Lei. Mas Cristo frustra seus intentos ao responde-lhe com um conhecimento intrínseco da Lei (Lc 2;47), um conceito pétreo, fundante. O amor (γαπν) a Deus é o princípio da obediência (Jo 14;23). Entretanto, para Cristo, amar (γαπν) ao próximo é tão diretamente entrelaçado com amar (γαπν) a Deus que ele vê a necessidade de responder ao questionamento com afirmações sobre um segundo mandamento semelhante ao primeiro.
O entendimento dessa realidade está espalhado nas cartas paulinas, bem como nas cartas gerais. João coloca essa relação de amar ao próximo como sinal do amor a Deus (I Jo 2;10, 3;10, 4;7,8,20,21), Tiago afirma que uma fé em Deus sem obras é morta, para ele amar a Deus implicava diretamente em amar aos semelhantes. Paulo passa a mostrar o mais excelente dos dons, o amor (γπην), e é evidente que esse amor, poeticamente apresentado, não é para com Deus. O amor ali apresentado é como deve ser a expressão do nosso amor (γπην) para com o próximo.
O amor com que Deus nos amou é o padrão para amarmos uns aos outros. O apóstolo ainda acrescenta que todos os atos feitos sem amor (γπην) são inválidos. Ele não afirma que os atos foram ruins, ou que deveriam ser evitados. Ele afirma que essa liturgia ou religiosidade destituída de amor (γπην) não tem valor nenhum por que está destituída da essência de Deus. Se os atos mais profundos de devoção não contemplarem, em amor, ao próximo, serão como um barulho, um som destituído de sentido e de beleza, que rapidamente torna-se insuportável (Ap 3;16).

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[1] Claro que em algum nível há uma precisão no relato, a questão é que o propósito do texto de Gênesis não reside no esclarecimento da mente humana e sim na revelação do Senhor.
[2] Na aterrorizante experiência do encontro de Deus com Jó, a multidão de inquietantes razões que ele tinha, foram silenciada e transformada em uma assombrosa e calma confissão de fé, “ainda que ele me mate, nEle confiarei”; quando Jesus acalma a tempestade os discípulos percebem admirados quem realmente era Jesus; a acusação apresentada por Deus contra o povo escolhido, registrada no primeiro capítulo de Isaías, trata exatamente disto: o boi conhece o seu dono e o jumento sabe quem o alimenta, mas o povo dele não tem entendimento.
[3] A diferente reside na fé demonstrada pela obediência de Noé ao construir a arca. Esse episódio é tipológico da obediência de Cristo o novo Adão, mas a potência da salvação propiciada pela obediência de Noé não é perfeita em comparação ao sacrifício de Jesus.
[4] As restrições são a espiritualidade e veracidade da adoração prestada a Deus. Independente de qual for a interpretação dos termos, fica claro que para Jesus só esse grupo em particular, que adora em espírito e verdade, são adoradores de Deus (ver Jo 4;24).
[5] Uma referência ao primeiro capítulo. 
[6] Uma referência ao artigo A Etimologia Bíblica do Termo Adoração

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