quinta-feira, 23 de maio de 2013

A ETIMOLOGIA BÍBLICA DO TERMO ADORAÇÃO

(O que tem a Bíblia a nos dizer sobre culto)



A acepção encontrada nos dicionários traz por certo que adora e cultuar são, de alguma forma, sinônimos. O Novo Dicionário Aurélio – Século XXI, Edição Eletrônica, 1999, traz as seguintes definições: Adorar v.t. 1. render culto a (divindade). 2. Amar extremosamente. No mesmo dicionário, a definição de culto, é: Culto sm. 1. Adorar ou homenagear a divindade em qualquer de suas formas e em qualquer religião. 2. Modo de exteriorizar o culto, ritual. 3. Veneração, preito. É claro que essas definições apenas mostram que os termos se misturam e que se igualam a ideia do senso comum, “adorar a Deus é prestar-lhe culto”. Entretanto os termos são mais complexos e exigem maior reflexão.

No Novo Testamento uma das palavras que foi traduzida por adorar significa render-se. O termo προσκυνεν e suas cognatas aparecem quase 60 vezes, sempre com o sentido de submissão. O termo, em sua etimologia, tem o sentido de “beijar os pés” ou prostrar-se diante de alguém superior, submeter-se, colocar-se a disposição de outro. Na LXX (versão grega do A.T.), o termo προσκυνεν e suas variantes aparecem em quase 300 passagens, sempre na tradução de vocábulos hebraico que também transmitiam o mesmo conceito de submissão ou rendição.

Existem na Bíblia mais de 5 mil termos associados a algum serviço religioso, culto ou celebração, com certeza sinalizando, dentre outras coisas, a importância bíblica dada à temática culto/adoração. Isso mostra que os autores entendiam a adoração em associações a outros termos que são válidos e imprescindíveis para uma compreensão bíblica verdadeira. Em uma dessas associações terminológicas, adorar está ligado ao servir ou serviço, (λατρεαν), que quando juntada ao vocábulo culto (vide definições aurelianas acima) que vem do latim, cultus, dá sentido a comentar primeiramente o termo λειτουργας, de que origina o vocábulo liturgia, antes de tratar propriamente da λατρεαν (serviço).

Composta de duas palavras gregas, “povo” (λαν) e “trabalho” (ργον), λειτουργας, que significava originalmente pagar sozinho as despesas de um trabalho público, cerimônia ou benfeitoria, voluntariamente ou por obrigação. Passou do uso secular para o religioso, de modo que os eruditos da LXX usaram cerca de 50 vezes o termo ou suas variantes para traduzir os vocábulos hebraicos como עֲבוֹדָה (avodah) פָּלְחָן (polchan)  ligados ao ministério sagrado dos sacerdotes (Ex 38,19, Nm 4;24, I Cr 6;48) de aspergir sangue na tenda e nos utensílios do Templo e o oferecimento diário de sacrifícios, “exercer o serviço” (λειτουργν) sacerdotal.

Entretanto a palavra liturgia, no contexto atual, traz apenas a ideia de cerimônia ou organização cúltica, um cronograma religioso. Na verdade o termo está destituído de seu verdadeiro sentido. No N.T. o apóstolo Paulo usa naturalmente o termo λειτουργν para descrever-se com ministro de Cristo, missionário aos gentios (Rm 15.16). Os líderes da igreja de Antioquia adoravam (λειτουργοντων) ao Senhor (At 13.2) por intermédio de oração, jejum e no ensino à igreja. A ajuda aos carentes da igreja de Jerusalém é chamada de λειτουργας (II Co 9.12). O sacro ofício de Jesus Cristo é um ministério superior (λειτουργας) (Hb 8.6). É correto afirmar que os cristãos cumprem uma “liturgia” quando trabalham pelo bem de seus irmãos, a exemplo de Cristo (Jo 3;4 a 14). O N.T. mostra, em diversos textos, que adoração genuína é “trabalhar” para Deus (At 13), consequentemente trabalhar para a Igreja.

Já o termo λατρεαν surge de λατρων (ordenado) no grego secular foi usado para indicar um trabalho pago e, mais tarde, um trabalho não pago, ou escravo (em hebraico עָבַד – avad  ou δολος em grego). Acrescentando ao conceito de adoração a ideia de uma relação serviçal entre o homem e divindade. Esse termo, reconhecido facilmente no vocábulo “idolatria” (serviço, devoção ou culto a um ídolo), em Atos 7;42, foi utilizado para descrever a atitude de certos israelitas rebeldes que cultuaram (λατρεειν) anjos e (presumidos) seres celestiais. Uma outra utilização é do apostolo Paulo que afirma ser os demônios que dão realidade ao culto (λατρεειν) a ídolos (I Co 10.20), e que Deus re­vela Sua ira contra todos os que idolatram a criatura (Rm 1.25).

O termo também é empregado em contextos positivos. Paulo utiliza-se de λατρεαν, “culto”, para a ideia de serviço santo e agradável (Rm 12;1), vemos o termo ser usado na passagem onde a profetisa Ana servia (λατρεουσα) ao Se­nhor no Templo, numa adoração de jejuns e orações (Lc 2.37), bem como em Hebreus 8;5, 9;9, 10;2, 13;10, se referindo ao culto judaico no Templo. No evangelho segundo Mateus, Jesus, também usa o termo λατρεαν pa­ra responder ao diabo (4;10) afirmando que somente Deus era digno desse serviço. Em Apocalipse, o apóstolo João descreve uma multidão que serve ou adora a Deus (λατρεουσιν) incessantemente (Ap 7;15). A λειτουργας [1], em que Je­sus se ofereceu foi para que os adoradores tivessem consciências limpas para poder servir (λατρεειν) ao Deus vivo (Hb 9;14).

No V.T. especialmente em Êxodo, Deuteronômio, Josué e Juízes o termo foi empregado com fre­qüência (90 vezes) na LXX sempre com a ideia de cultuar e de adorar a Deus (Ex 4;23, 8;1,20, 9;1, Ez 20;32, etc).

Outro conceito utilizado no grego bíblico, vinculado ao assunto é o σεβεας (reverenciar). O vocábulo consta em 25 passagens e no original transmite a ideia de um homem religioso devotado a seus deuses que faz tudo para evita o azar, identificado com desfavorecimento ou castigo da parte de um deus (At 17). É a obediência a divindade pelo temor, respeito pela sua autoridade.

Mateus e Marcos citam a versão grega (LXX) de Isaías 29;13: “Em vão me ado­ram (σβοντα), ensinando doutrinas que são preceitos de homens” (Mt 15;9; Mc 7;7). Em Romanos 1;25, aparecem paralelamente os termos σεβσθησαν e λτρευσαν para apontar a religiosidade dos pagãos, “adorando e servindo a criatura, em lugar do Criador”.  No evangelho segundo João, lê-se; Deus não atende a pecadores, mas pelo contrário se alguém teme a Deus (θεοσεβς) e pratica sua vontade, a este atende (Jo 9;31).

No VT, o termo aparece mais 4 vezes, todas na LXX. Em Ex 18;21, Jetro sugere a escolha de lideres, tementes a Deus (no texto a ideia é associada a homens que, também, não sejam corruptos), para julgar as causas mais simples do povo e ajudar Moisés na direção da nação. O termo também é utilizado para descrever a fidelidade de Jó (Jó 1;1,8 e 2;3).

A negação ou a falta de reverência, σβειαν aparece cerca de 70 vezes para traduzir termos com פֶּשַׁע  (pesha) ou רֶשַׁע  (resha) ou תֹּעֵבָה תּוֹעֵבָה  (toevah) – impiedade, irreverência, maldade ou culpa por desobediência . O termo é posto lado a lado com injustiça (Rm 1;18).  Já em II Tm 3;12, outra variante é usada, nesse caso para descreve um grupo disposto a viver reverentemente ou piedosamente (εσεβς) em Cristo Jesus, mesmo sendo perseguidos.

Ainda teríamos o termo θρησκεας, que só aparece seis vezes no N.T. (At 26;5, CI 2;18,23, Tg 1;26,27) e pode sempre ser entendido como religião ou religiosidade, embora tenha sido usado o termo adoração, na tradução de Colossenses 2;18, para descrever o ato religioso de reverenciar a anjos. Não há grande diferença entre o sentido deste vocábulo e o de λατρεαν, sendo que ambos tratam do culto oferecido a divindade na sua expressão externa. O termo (θρησκεας) nesses textos trata da observação da adoração na vida prática, no dia-a-dia: controlar a língua, cuidar dos órfãos e das viúvas em suas tribulações, etc.

De fato, as ideias associadas aos termos adoração e culto, estão mais ligadas ao estado em que adorador se apresenta a Deus do que onde e quando ele apresenta ao Senhor. Embora no vernáculo os termos adoração, culto, liturgia, serviço religioso, reverência e religião, acabaram se misturando e no senso comum eles são considerados sinônimos, é correto afirmar que a cerne da ideia religiosa de reverência cúltica biblicamente estabelecida (lê-se adoração bíblica) é apropriadamente ligada a uma relação de escravo e senhor, essa relação é bastante significativa para definir a adoração que devemos prestar a Deus. Submissão e serventia são as definições mais acertadas para a adoração.




[1] O termo não aparece no texto de Hb 9;14, entretanto está ligado ao ofício de Cristo.