terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Então, um feliz Natal!

A despeito de toda a tolice, futilidade, esperteza e ganância (associadas a esta data), o Natal (digo do dia 25 de dezembro, dos enfeites e da celebração, a "festa cristã" que John Lennon cantava) é uma das datas mais significativa para mim. 

Não tanto porque o sentimento de amor se espalha (ele se espalha — podemos até discutir o que é este amor), ou pelo fato de termos uma tendência a — nesta data, e por causa dela — revermos (e reforçarmos) os laços familiares, ou ainda pela nostálgica “mágica” das noites de natal (“mágica” que, graças a Deus, em minha casa nunca esteve — lá aprendemos cedo o que era o Natal, o bom e verdadeiro, o fútil e enganoso). E nem mesmo por uma tola esperança de que nesta época os corações dos homens se tornem, pelo espírito natalino (?!), mais aberto ao cristianismo verdadeiro. 

Gosto mesmo deste dia, porque mesmo errando a data, mesmo se esquecendo dO Fato, mesmo subvertendo o comemorado, a todos é novamente anunciado, ano após ano, que Ele veio! Você pode não acreditar, mas nunca poderá dizer: "eu nunca ouvi falar".

Estudar, conhecer, entender esta história é sem dúvida a tarefa principal de todos os que são filhos de Deus. Já de muito tempo, conta-la é um elo, um unificador da cristandade. Somos diferentes, mas nele somos um (Jo 11;52). O Evento Cristo é o alicerce do Cristianismo (At 4;11), é o Autor e Consumador da nossa fé (Hb 12,2), quem gera em nós o amor de que mesmo é o alvo (Fp 2;13), Alfa e Omega, o principio e o fim (Ap 22;13). Cristo é o Senhor, e se há espaço para refletirmos mesmo que em parte da História de Cristo, façamos. 

Ao ler os trechos natalinos das Escrituras Sagradas a primeira coisa que salta aos nossos olhos é o fato que Cristo nasceu. Ele partilhou dessa experiência que iguala todos os seres humanos. Foi gerado num ventre materno: nove meses, 39, 40 semanas de infortúnio — perceba, Jesus foi igualzinho você — mudança estrutural: uma célula se tornou duas, três, quatro e no quarto dia já uma massa, mais de 100 células. Cresce embrião. Na quinta semana já tem rins, fígado, sistema nervoso e coluna vertebral. Uma das partes passa a bater, o coração. O coração de Jesus na quinta semana, aquele que dirigia o coração do rei, agora tem um coração a bater. E Ele todo ainda não media 2,5 cm.

O parto é feio, violento, virulento; natural?! Sujo, desesperador... não esqueça que esse feto é o Verbo de Deus, a imagem de quem somos semelhança, a exata glória do Pai. Ele se esvaziou de sua glória, desceu, nasceu e partilhou de todas as experiências humanas, ninguém poderia dizer que Jesus foi ajudado, que foi protegido, ilegalmente beneficiado.  

Sua mãe era uma Maria desposada por um José. Uma mãe comum, uma jovem comum, que queria casar como tantas outras — comum! Noiva, nada mais, nada especial. Não era rica, e nem a mais bem sucedida. José, um trabalhador braçal... Jesus nasceu como a gente em todos os aspectos biológicos e sociais. Não houve cotas, preferencias, ajudinha ou carteirada.

Mas Jesus também foi diferente. Sim ele nasceu como a gente, mas no início da história de Jesus, os autores já dizem que era especial. Mateus e Lucas registram que embora tenha partilhado da experiência humana de ser gestacionado e parido, Jesus foi miraculosamente concebido. Maria era virgem mas estava grávida, o que nela foi gerado, era santo, do poder do Altíssimo. Lucas conta com exatidão: um anjo disse a Maria, ela seria mãe do Salvador, do Filho de Deus, Ele salvaria o seu povo de seus pecados. Ele não carregava a Maldição, o Pecado Original.  Jesus viveu sem pecado, fez tudo o que Deus-Pai mandou. Ajudou a muitos, ensinou sobre o Reino dos Céus, fez muitos milagres e morreu naquela cruz. 

Esquecemos-nos disso no Natal. Lembramos do infante que nasce, a nova vida que se anuncia, a esperança que ressurge – E isso é muito bom, foi para isso que Ele veio, é graça, favor imerecido. Mas o bebê tão aguardado (Is 9;6), o nosso Senhor e Salvador, veio para morrer na cruz. Morre por mim, para mim, no meu lugar. Essa é a História, a Velha História, que sempre convém contar.

A boa nova do Reino, informação aguarda pelos humanos já desde o casal primevo (Gn3;15), começa com um re-anúncio do nosso fracasso (Mt 1;21). Dentre outras coisas, o princípio do Evangelho de Jesus contado no primeiro capítulo do livro de Marco, uni o passado mais remoto, trazendo à memória a aguardada remissão do Pecado Original, com a revelação histórica, teatralizada em Davi e na promessa de um trono eterno, e esses enfim com a inversão do inverso, quanto no Universo adentra o Único Verso, o Verbo de Deus, o Perdão, num convite pungente de arrependimento e mudança do caminho mal.

João Batista prega este arrependimento, não para que recebam o Reino, mas por causa do pavor (santo temor) instalado em seu coração (Mt 3;7), trazido pela certeza que enfim Ele viria. A mudança da sorte, o fim do castigo, o Reino livre, a vitória tão aguardada, não esconde a desgraça forjada pelo tempo reinante no contexto. O assombro que impulsiona João no deserto, é o mesmo que atinge o profeta Isaias (Is 6), este clama por si, João clama ao povo: Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento (Mt 3;8).

Nessa data especial, que é o Natal, desejo a você não apenas boas festas e um próspero ano novo. Também não quero que você só se comova com as músicas e luzes piscantes ou com as alegres comemorações. Mas que a história do Natal, a verdadeira história do Natal, a completa história do Natal, faça sentido para você; que o nascimento de Jesus, comemorado nessa época, seja para você o início do relato da salvação da sua vida. Deus rompeu a naturalidade porque amou ao mundo de tal maneira que deu o seu único Filho, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Ele desceu a esfera humana, ocultou sua glória, tornou-se carne, para salvar o pecador. E se isso não te comove, nada mais o fará. 


Então, arrependa-se e tenha um feliz Natal!

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Nesses tempo de acusações... uma palavra sábia.

"Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho e então verás claramente para tirar o argueiro do olho de teu irmão."
Algumas pessoas supõem que, na parábola dos corpos estranhos, Jesus estivesse proibindo-nos de agir como oculistas morais e espirituais que interferem nos olhos dos outros, e dizendo-nos que tratássemos de nossa própria vida. Mas não é assim. O fato da condenação e da hipocrisia serem proibidas não nos isenta da responsabilidade de irmãos, uns para com os outros. Pelo contrário, Jesus mais tarde ensinaria que, se nosso irmão pecar contra nós, a nossa primeira obrigação (embora geralmente negligenciada) é de "argüi-lo entre ti e ele só".  A mesma obrigação é colocada sobre nós aqui. Na verdade, em determinadas circunstâncias, somos proibidos de interferir, isto é, quando há um corpo estranho muito maior em nosso próprio olho e não o tenhamos removido. Mas, em outras circunstâncias, Jesus realmente nos ordena que reprovemos e corrijamos nosso irmão. Depois de resolver o problema com o nosso próprio olho, podemos ver claramente e mexer no olho do outro. Uma sujeirinha no olho dele é chamada, afinal de contas e muito corretamente, de corpo "estranho". Não pertence ao olho. Sempre será estranho, geralmente doloroso e, às vezes, perigoso. Deixá-lo ali, sem nenhuma tentativa de remoção, dificilmente seria coerente com o nosso amor fraternal.

Nosso dever cristão, então, não é ver o argueiro no olho do nosso irmão, enquanto, ao mesmo tempo, não reparamos na trave (v. 3) no nosso próprio olho; e, muito menos, dizer ao nosso irmão: "Deixa-me tirar o argueiro do teu olho", enquanto ainda não retiramos a trave de nosso próprio olho (v. 4); mas, antes, tirar primeiro a trave de nosso próprio olho, para que com a claridade de visão resultante possamos tirar o argueiro do olho de nosso irmão (v. 5). Novamente se evidencia que Jesus não está condenando a crítica propriamente dita mas, antes, a crítica desvinculada de uma concomitante autocrítica; não a correção propriamente dita mas, antes, corrigir os outros quando nós mesmos ainda não nos corrigimos.

O padrão de Jesus para os relacionamentos na contracultura cristã é alto e sadio. Em todas as nossas atitudes e no comportamento relativo a outras pessoas, nem devemos representar o juiz (severo, censurador e condenador), nem o hipócrita (que acusa os outros enquanto se justifica), mas o irmão, cuidando dos outros a ponto de primeiro acusar-nos e corrigir-nos para depois procurarmos ser construtivos na ajuda que lhes vamos dar. "Corrija-o", disse Crisóstomo, referindo-se a alguém que tinha pecado, "mas não como um inimigo, nem como um adversário que exige o cumprimento da pena, mas como um médico que fornece o remédio",  e, ainda mais, como um irmão amoroso e ansioso em salvar e restaurar. Precisamos ser tão críticos conosco como somos geralmente com os outros, e tão generosos com os outros como sempre somos conosco. Assim cumpriremos a Regra Áurea que Jesus nos dá no versículo 12 e agi¬remos em relação aos outros como gostaríamos que eles fizessem conosco.
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Contracultura Cristã - A mensagem do Sermão do Monte - John Stott

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Música, canto e a Igreja

Havendo compromissos conciliares e/ou confessional específico sobre o uso da música no culto, os responsáveis (pastores, líderes ou liturgo, ou liturgista) devem descansar neles, seguindo-os sem maiores contestações, ou questiúnculas. Isso esboçará certa humildade (não fingida) bastante condizente com o que penso ser o ideal do líder cristão. Mas, em não havendo acerto conciliar ou confessional, ou ainda mesmo por causa de certa inquietação – justa, provavelmente – sobre a temática, convém que cada um avalie-se e então pratique aquilo que não condena. Entretanto, devemos nos lembrar, os que estão filiados em concílios, convenções ou associações (que possuem resoluções sobre o tema) devem ser submissos (inicialmente, e sinceramente) a eles, ou claramente darem seus motivos para não serem, aguardando resolução, nas instâncias devidas, sobre essa dissidência. 

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Você é um cão?

O cão late quando seu dono é atacado. Eu seria um covarde se visse a verdade divina ser atacada e continuasse em silêncio, sem dizer nada.(João Calvino)
Lendo essa frase pensei em algumas coisas: 
1- Simplicidade e fidelidade andam juntas: cães são simples e, por isso, fieis; eles naturalmente confiam em seus donos;
2- Muitos não sabem de quem são: se o cão não late ao ver seu dono ser atacado, provavelmente ele não sabe (ou não sente, ou ainda não vive como...) que tem um dono;
3- Covardia é igual (em muitos casos) inércia;
4- Muitas ações são viscerais, nem por isso são indignas;
5- Embora o dono seja poderoso (no caso todo-poderoso), isso não impede de ser atacado;
6- Embora o dono (todo-poderoso) seja, eventualmente, atacado, ele não será derrotado, nem ferido, amedrontado e etc.;
7- Mesmo não havendo nenhum risco real ao dono, o cão fiel latirá;
8- Latir não implica em afugentar o agressor, basta ao cão demostrar fidelidade ao seu dono.

terça-feira, 16 de julho de 2013

O Cristão e a Sociedade

John Stott - A Mensagem do Sermão do Monte

Os perseguidos por causa da justiça (Mt 5;10-12)

Pode parecer estranho que Jesus passasse dos pacificadores para a perseguição, da obra de reconciliação à experiência de hostili­dade. Mas, por mais que nos esforcemos em fazer a paz com determinadas pessoas, elas se recusam a viver em paz conosco. Nem todas as tentativas de reconciliação têm sucesso. Na ver­dade, alguns tomam a iniciativa de opor-se a nós e, particular­mente, de nos injuriar e perseguir. Não por causa de nossas fra­quezas ou idiossincrasias, mas "por causa da justiça" (v. 10) e "por minha causa" (v. 11), isto é, porque não gostam da justiça, da qual sentimos fome e sede (v. 6), e porque rejeitaram o Cristo que procuramos seguir. A perseguição é simplesmente o conflito entre dois sistemas de valores irreconciliáveis.

Como Jesus esperava que os seus discípulos reagissem diante da perseguição? O versículo 12 diz: Regozijai-vos e exultai! Não devemos nos vingar como o incrédulo, nem ficar de mau humor como uma criança, nem lamber nossas feridas em autopiedade como um cão, nem simplesmente sorrir e suportar tudo como um estóico, e muito menos fazer de conta que gostamos disso como um masoquista. Então, como agir? Devemos nos regozijar como um cristão, e até mesmo "pular de alegria"[1] Por quê? Em parte porque, Jesus acrescentou, é grande o vosso galardão nos céus (y. 12a). Podemos perder tudo aqui na terra, mas her­daremos tudo nos céus, não como uma recompensa meritória, mas porque "a promessa da recompensa é gratuita".[2] E, por outro lado, porque a perseguição é um sinal de genuinidade, um certificado da autenticidade cristã, pois assim perseguiram aos profetas que viveram antes de vós (v. 12b). Se somos perse­guidos hoje, pertencemos a uma nobre sucessão. Mas o motivo principal pelo qual deveríamos nos regozijar é porque estamos sofrendo, disse ele, por minha causa (v.) 11), por causa de nossa lealdade para com ele e para com os seus padrões de verdade e de justiça. Certamente os apóstolos aprenderam esta lição muito bem, pois, tendo sido açoitados pelo Sinédrio, "eles se retira­ram . . . regozijando-se por terem sido considerados dignos de sofrer afrontas por esse Nome".[3] Eles sabiam, assim como nós devemos saber, que "ferimentos e contusões são medalhas de honra"[4]

É importante notar que esta referência à perseguição é uma bem-aventurança como as demais. Na verdade, tem o privilégio de ser uma bem-aventurança dupla, pois Jesus primeiro decla­rou-a na terceira pessoa como as outras sete (Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, v. 10) e, então, repetiu-a na oração direta da segunda pessoa (Bem-aventurados sois quando . . . vos injuriarem e vos perseguirem . . ., v. 11). Con­siderando que todas as bem-aventuranças descrevem o que cada discípulo cristão deve ser, concluímos que a condição de ser desprezado e rejeitado, injuriado e perseguido, é um sinal do discipulado cristão, da mesma forma que um coração puro ou misericordioso. Cada cristão deve ser um pacificador, e cada cristão deve esperar oposição. Aqueles que têm fome de justiça sofrerão por causa da justiça que anseiam. Jesus disse que seria assim em qualquer lugar. Também o disseram seus apóstolos Pedro e Paulo.[5] Tem sido assim em todas as épocas. Não deve­remos nos surpreender se a hostilidade anticristã aumentar, mas, antes, se ela não existir. Precisamos nos lembrar do infor­túnio complementar registrado por Lucas: "Ai de vós, quando vos louvarem!"[6] A popularidade universal está para os falsos profetas, assim como a perseguição para os verdadeiros. Poucos homens deste século têm entendido melhor a inevitabilidade do sofrimento do que Dietrich Bonhoeffer. Ele parece nunca ter vacilado em seu antagonismo cristão contra o regime nazista, embora isto significasse prisão, ameaça de tortura, perigo para a sua própria família e, finalmente, morte. Ele foi executado por ordem direta de Heinrich Himmler, em abril de 1945, no campo de concentração de Flossenburg, a apenas poucos dias antes da libertação. Era o cumprimento do que ele sempre crera e ensinara: O sofrimento é, pois, a característica dos seguidores de Cristo. O discípulo não está acima do seu mestre. O discipulado é "passio passiva", é sofrimento obrigató­rio. Por isso também o Dr. M. Lutero incluiu o sofrimento no rol dos sinais da verdadeira Igreja. Um anteprojeto da Confissão de Augsburg definiu a Igreja como comunidade dos que são 'per­seguidos e martirizados por causa do Evangelho' ... O discipu­lado é união com Cristo sofredor. Por isso nada há de estranho no sofrimento do cristão, antes é graça, ê alegria."[7]

As bem-aventuranças pintam um retrato compreensivo do discípulo cristão. Primeiro, vemo-lo de joelhos diante de Deus, reconhecendo sua pobreza espiritual e chorando por causa dela. Isto o torna manso ou gentil em todos os seus relacionamentos, considerando que a honestidade o compele a permitir que os outros pensem dele aquilo que, diante de Deus, já confessou. Mas longe dele aquiescer em seu pecado, pois ele tem fome e sede de justiça; anseia crescer na graça e na bondade.

Vemo-lo, depois, junto aos outros, lá fora, na comunidade humana. Seu relacionamento com Deus não o faz fugir da socie­dade nem o isola do sofrimento do mundo. Pelo contrário, per­manece no meio deste, demonstrando misericórdia àqueles que foram golpeados pela adversidade e pelo pecado. Ele é transpa­rentemente sincero em todos os seus relacionamentos e procura desempenhar um papel tão construtivo como pacificador. Mas ninguém lhe agradece pelos esforços; antes, é hostilizado, inju­riado, insultado e perseguido por causa da justiça que defende e por causa do Cristo com o qual se identifica.

Tal é o homem ou a mulher que é "bem-aventurado", isto é, que tem a aprovação de Deus e alcança realização própria como ser humano.

Mas, nisso tudo, os valores e padrões de Jesus estão em con­flito direto com os valores e padrões comumente aceitos pelo mundo. O mundo considera bem-aventurados os ricos, não os pobres, tanto na esfera material como na espiritual; os des­preocupados e folgazões, não aqueles que consideram o mal com tanta seriedade que choram por causa dele; os fortes e impe­tuosos, não os mansos e gentis; os saciados, não os famintos; aqueles que cuidam de sua própria vida, não aqueles que se envolvem nos assuntos dos outros e se ocupam em fazer o bem, "demonstrando misericórdia" e "fazendo a paz"; aqueles que alcançam seus propósitos, mesmo apelando para meios escusos, e não os limpos de coração, que se recusam a comprometer sua integridade; aqueles que são confiantes e populares e que vivem sossegados, não aqueles que têm de sofrer perseguição.

Provavelmente ninguém odiou mais a "suavidade" do Sermão do Monte do que Friedrich Nietzsche. Embora sendo filho e neto de pastores luteranos, rejeitou o Cristianismo quando estu­dante. O seu livro, The Anti-Christ (O Anticristo, um título que ele ousou aplicar a si mesmo em seu esboço autobiográfico Ecce homo),[8] é a sua mais violenta polêmica, escrita em 1888, um ano antes de ficar louco. Nele, define como sendo "bom" "tudo o que eleva o sentimento de poder, a força de vontade, o poder propriamente dito no homem", considerando "mau" "tudo o que procede da fraqueza".[9] Conseqüentemente, em resposta à sua própria pergunta, "O que é mais prejudicial do que qual­quer vício?", ele responde: "Simpatia ativa pelo que é mal cons­tituído e fraco: o Cristianismo."[10] Ele considera o Cristianismo como uma religião de piedade e não uma religião de poder; por isso, "nada em nossa modernidade doentia é mais doentio do que a piedade cristã".[11] Ele despreza "o conceito cristão de Deus, Deus como espírito", um conceito do qual "tudo o que é forte, cora­joso, dominador, orgulhoso", foi eliminado.[12] "Em todo o Novo Testamento, só encontramos uma única figura solitária que é preciso respeitar", ele afirma, e esta é Pôncio Pilatos, o gover­nador romano.[13] Jesus, por outro lado, é desprezado como sendo o "Deus sobre a cruz", e o Cristianismo como "a maior das desgraças da humanidade".[14] A razão de sua malevolência está clara. O ideal que Jesus elogiou é a criancinha. Ele não deu apoio algum ao elogio do "super-homem" de Nietzsche. Por isso, este repudiou todo o sistema de valores de Jesus. "Eu condeno o Cris­tianismo", escreveu. "A igreja cristã não deixou nada intacto com sua depravação; transformou cada valor em um desvalor."[15] Ele, pelo contrário (nas últimas palavras do seu livro), convocou a uma "reavaliação de todos os valores".[16]

Mas Jesus não transigirá nos seus padrões para acomodar-se a Nietzsche, ou aos seus seguidores, ou a qualquer um de nós que possa, inconscientemente, ter assimilado traços ou partes da filosofia do poder de Nietzsche. Nas bem-aventuranças, Jesus apresenta um desafio fundamental ao mundo não-cristão e ao seu ponto de vista, e exige que seus discípulos adotem o seu sis­tema de valores, totalmente diferente. Como Thielicke disse, "qualquer pessoa que entre em comunhão com Jesus tem de passar por uma reavaliação de valores".[17]

Foi isto que Bonhoeffer (que, aliás, foi criado na mesma tra­dição luterana de Nietzsche) chamou de os "extraordinários" da vida cristã. "A cada nova bem-aventurança aprofunda-se o abismo entre os discípulos e o povo. A separação do discipulado torna-se cada vez mais evidente." Isso é particularmente óbvio na bênção dos que choram. Jesus está falando dos que "não sintonizam com o mundo, os que não podem equiparar-se ao mundo. Choram sobre o mundo, sua culpa, seu destino e sua sorte. Enquanto o mundo festeja, ficam à parte; enquanto o mundo chama: 'Gozai a vida!', os discípulos choram. Sabem que o navio festivamente engalanado já faz água. O mundo sonha com o progresso, com o poder, com o futuro — os discí­pulos sabem do fim, do juízo e da vinda do reino dos céus para o qual o mundo não está apto. Por esta razão são os discípulos estranhos ao mundo, hóspedes indesejáveis, perturbadores que são rejeitados."[18]

Tal inversão dos valores humanos é básica na religião bíblica. Os métodos do Deus das Escrituras parecem uma confusão para os homens, pois exaltam o humilde e humilham o orgulhoso; chamam de primeiros, os últimos, e de últimos, os primeiros; atribuem grandeza ao servo, despedem o rico de mãos vazias e declaram que os mansos serão seus herdeiros. A cultura do mundo e a contracultura de Cristo estão em total desarmonia uma com a outra. Resumindo, Jesus parabeniza aqueles que o mundo mais despreza, e chama de "bem-aventurados" aqueles que o mundo rejeita.
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[1] Lc 6:23.
[2] Calvino, p. 267
[3] At 5:41.
[4] Lenski, p. 197.
[5] Por exemplo Jo 15:18-25; 1 Pe4:13,14; At 14:22; 2 Tm 3:12.
[6] Lc 6:26.
[7] Bonhoeffer, p. 46
[8] Primeira edição 1895: Penguin Classics 1968.
[9] p.15.
[10] p. 116.
[11] pp. 118-119.
[12] pp. 127-128.
[13] p. 162.
[14] pp. 168ss
[15] p.186.
[16] p.187.
[17] p.77.
[18] pp. 58,59.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

A ETIMOLOGIA BÍBLICA DO TERMO ADORAÇÃO

(O que tem a Bíblia a nos dizer sobre culto)



A acepção encontrada nos dicionários traz por certo que adora e cultuar são, de alguma forma, sinônimos. O Novo Dicionário Aurélio – Século XXI, Edição Eletrônica, 1999, traz as seguintes definições: Adorar v.t. 1. render culto a (divindade). 2. Amar extremosamente. No mesmo dicionário, a definição de culto, é: Culto sm. 1. Adorar ou homenagear a divindade em qualquer de suas formas e em qualquer religião. 2. Modo de exteriorizar o culto, ritual. 3. Veneração, preito. É claro que essas definições apenas mostram que os termos se misturam e que se igualam a ideia do senso comum, “adorar a Deus é prestar-lhe culto”. Entretanto os termos são mais complexos e exigem maior reflexão.

No Novo Testamento uma das palavras que foi traduzida por adorar significa render-se. O termo προσκυνεν e suas cognatas aparecem quase 60 vezes, sempre com o sentido de submissão. O termo, em sua etimologia, tem o sentido de “beijar os pés” ou prostrar-se diante de alguém superior, submeter-se, colocar-se a disposição de outro. Na LXX (versão grega do A.T.), o termo προσκυνεν e suas variantes aparecem em quase 300 passagens, sempre na tradução de vocábulos hebraico que também transmitiam o mesmo conceito de submissão ou rendição.

Existem na Bíblia mais de 5 mil termos associados a algum serviço religioso, culto ou celebração, com certeza sinalizando, dentre outras coisas, a importância bíblica dada à temática culto/adoração. Isso mostra que os autores entendiam a adoração em associações a outros termos que são válidos e imprescindíveis para uma compreensão bíblica verdadeira. Em uma dessas associações terminológicas, adorar está ligado ao servir ou serviço, (λατρεαν), que quando juntada ao vocábulo culto (vide definições aurelianas acima) que vem do latim, cultus, dá sentido a comentar primeiramente o termo λειτουργας, de que origina o vocábulo liturgia, antes de tratar propriamente da λατρεαν (serviço).

Composta de duas palavras gregas, “povo” (λαν) e “trabalho” (ργον), λειτουργας, que significava originalmente pagar sozinho as despesas de um trabalho público, cerimônia ou benfeitoria, voluntariamente ou por obrigação. Passou do uso secular para o religioso, de modo que os eruditos da LXX usaram cerca de 50 vezes o termo ou suas variantes para traduzir os vocábulos hebraicos como עֲבוֹדָה (avodah) פָּלְחָן (polchan)  ligados ao ministério sagrado dos sacerdotes (Ex 38,19, Nm 4;24, I Cr 6;48) de aspergir sangue na tenda e nos utensílios do Templo e o oferecimento diário de sacrifícios, “exercer o serviço” (λειτουργν) sacerdotal.

Entretanto a palavra liturgia, no contexto atual, traz apenas a ideia de cerimônia ou organização cúltica, um cronograma religioso. Na verdade o termo está destituído de seu verdadeiro sentido. No N.T. o apóstolo Paulo usa naturalmente o termo λειτουργν para descrever-se com ministro de Cristo, missionário aos gentios (Rm 15.16). Os líderes da igreja de Antioquia adoravam (λειτουργοντων) ao Senhor (At 13.2) por intermédio de oração, jejum e no ensino à igreja. A ajuda aos carentes da igreja de Jerusalém é chamada de λειτουργας (II Co 9.12). O sacro ofício de Jesus Cristo é um ministério superior (λειτουργας) (Hb 8.6). É correto afirmar que os cristãos cumprem uma “liturgia” quando trabalham pelo bem de seus irmãos, a exemplo de Cristo (Jo 3;4 a 14). O N.T. mostra, em diversos textos, que adoração genuína é “trabalhar” para Deus (At 13), consequentemente trabalhar para a Igreja.

Já o termo λατρεαν surge de λατρων (ordenado) no grego secular foi usado para indicar um trabalho pago e, mais tarde, um trabalho não pago, ou escravo (em hebraico עָבַד – avad  ou δολος em grego). Acrescentando ao conceito de adoração a ideia de uma relação serviçal entre o homem e divindade. Esse termo, reconhecido facilmente no vocábulo “idolatria” (serviço, devoção ou culto a um ídolo), em Atos 7;42, foi utilizado para descrever a atitude de certos israelitas rebeldes que cultuaram (λατρεειν) anjos e (presumidos) seres celestiais. Uma outra utilização é do apostolo Paulo que afirma ser os demônios que dão realidade ao culto (λατρεειν) a ídolos (I Co 10.20), e que Deus re­vela Sua ira contra todos os que idolatram a criatura (Rm 1.25).

O termo também é empregado em contextos positivos. Paulo utiliza-se de λατρεαν, “culto”, para a ideia de serviço santo e agradável (Rm 12;1), vemos o termo ser usado na passagem onde a profetisa Ana servia (λατρεουσα) ao Se­nhor no Templo, numa adoração de jejuns e orações (Lc 2.37), bem como em Hebreus 8;5, 9;9, 10;2, 13;10, se referindo ao culto judaico no Templo. No evangelho segundo Mateus, Jesus, também usa o termo λατρεαν pa­ra responder ao diabo (4;10) afirmando que somente Deus era digno desse serviço. Em Apocalipse, o apóstolo João descreve uma multidão que serve ou adora a Deus (λατρεουσιν) incessantemente (Ap 7;15). A λειτουργας [1], em que Je­sus se ofereceu foi para que os adoradores tivessem consciências limpas para poder servir (λατρεειν) ao Deus vivo (Hb 9;14).

No V.T. especialmente em Êxodo, Deuteronômio, Josué e Juízes o termo foi empregado com fre­qüência (90 vezes) na LXX sempre com a ideia de cultuar e de adorar a Deus (Ex 4;23, 8;1,20, 9;1, Ez 20;32, etc).

Outro conceito utilizado no grego bíblico, vinculado ao assunto é o σεβεας (reverenciar). O vocábulo consta em 25 passagens e no original transmite a ideia de um homem religioso devotado a seus deuses que faz tudo para evita o azar, identificado com desfavorecimento ou castigo da parte de um deus (At 17). É a obediência a divindade pelo temor, respeito pela sua autoridade.

Mateus e Marcos citam a versão grega (LXX) de Isaías 29;13: “Em vão me ado­ram (σβοντα), ensinando doutrinas que são preceitos de homens” (Mt 15;9; Mc 7;7). Em Romanos 1;25, aparecem paralelamente os termos σεβσθησαν e λτρευσαν para apontar a religiosidade dos pagãos, “adorando e servindo a criatura, em lugar do Criador”.  No evangelho segundo João, lê-se; Deus não atende a pecadores, mas pelo contrário se alguém teme a Deus (θεοσεβς) e pratica sua vontade, a este atende (Jo 9;31).

No VT, o termo aparece mais 4 vezes, todas na LXX. Em Ex 18;21, Jetro sugere a escolha de lideres, tementes a Deus (no texto a ideia é associada a homens que, também, não sejam corruptos), para julgar as causas mais simples do povo e ajudar Moisés na direção da nação. O termo também é utilizado para descrever a fidelidade de Jó (Jó 1;1,8 e 2;3).

A negação ou a falta de reverência, σβειαν aparece cerca de 70 vezes para traduzir termos com פֶּשַׁע  (pesha) ou רֶשַׁע  (resha) ou תֹּעֵבָה תּוֹעֵבָה  (toevah) – impiedade, irreverência, maldade ou culpa por desobediência . O termo é posto lado a lado com injustiça (Rm 1;18).  Já em II Tm 3;12, outra variante é usada, nesse caso para descreve um grupo disposto a viver reverentemente ou piedosamente (εσεβς) em Cristo Jesus, mesmo sendo perseguidos.

Ainda teríamos o termo θρησκεας, que só aparece seis vezes no N.T. (At 26;5, CI 2;18,23, Tg 1;26,27) e pode sempre ser entendido como religião ou religiosidade, embora tenha sido usado o termo adoração, na tradução de Colossenses 2;18, para descrever o ato religioso de reverenciar a anjos. Não há grande diferença entre o sentido deste vocábulo e o de λατρεαν, sendo que ambos tratam do culto oferecido a divindade na sua expressão externa. O termo (θρησκεας) nesses textos trata da observação da adoração na vida prática, no dia-a-dia: controlar a língua, cuidar dos órfãos e das viúvas em suas tribulações, etc.

De fato, as ideias associadas aos termos adoração e culto, estão mais ligadas ao estado em que adorador se apresenta a Deus do que onde e quando ele apresenta ao Senhor. Embora no vernáculo os termos adoração, culto, liturgia, serviço religioso, reverência e religião, acabaram se misturando e no senso comum eles são considerados sinônimos, é correto afirmar que a cerne da ideia religiosa de reverência cúltica biblicamente estabelecida (lê-se adoração bíblica) é apropriadamente ligada a uma relação de escravo e senhor, essa relação é bastante significativa para definir a adoração que devemos prestar a Deus. Submissão e serventia são as definições mais acertadas para a adoração.




[1] O termo não aparece no texto de Hb 9;14, entretanto está ligado ao ofício de Cristo.