terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Os Salmos: Arte e Cultura.

Encontrados não só no livro de Salmos, mas em vários livros bíblicos, os salmos estão inseridos num contexto social[1] amplo em que já existia a poesia e as suas leis, de modo que os salmistas canônicos não são os criadores do tipo de poesia (salmo). Esses se apropriaram deles como ferramentas, usando-os na expressão do pensamento, crença e esperança, fazendo dessa arte não só um instrumento de ensino, mas também um ‘artefato’ religioso.

Contrariando a poesia ocidental onde a sonoridade produzida pela rima é apreciada e diligentemente buscada, os salmos, apresentam construção temática ligada ao significado e ao pensamento do autor. Normalmente utilizando de paralelismo a poesia exprime um pensamento em dois versos sucessivos, mudando os termos e a forma, que pode ser quanto ao significado (sinonimico), por contraste (anestético), por complemento (sintético) e por intensificação (climático).

Um fato histórico
Na Mesopotâmia, no contexto sumério-babilônico, que começa em meados do terceiro milênio e estende-se até 1600 a.C., a poesia (ou cânticos) apresenta-se em um tipo “purificado” e estruturado em cânones, cujas reminiscências vão até ao tempo dos Selêucidas. Desse período foram conservados muitos textos sacros e religiosos, e em particular hinos, cânticos penitenciais, lamentações, e algumas poesias ligadas à vida quotidiana. Esses hinos podem ser divididos em 4 grupos: 1) hinos de glorificação dos deuses (entre estes aqueles que são formulados na primeira pessoa do singular e colocados na boca da deusa Iscar); 2) hinos de louvor ao rei (muitas vezes um exaltado louvor de si mesmo); 3) cânticos de louvor às divindades, pontilhados de expressões de bênçãos e orações em favor dos reis e 4) glorificações de templos sumariados.

Desenvolveu-se, também, um gênero literário de cântico de amor ligado ao culto, conservado em fragmentos. Este gênero pode estar relacionado com o amor entre os deuses ou com as núpcias sagradas; pode glorificar a beleza e os encantos do ser bem-amado, ou lamentar sua perda. Recentemente foram descobertos cânticos fúnebres nos quais um homem lamenta a morte do pai ou da esposa. Os hinos e as lamentações apresentam uma estrutura literária semelhante. Cada uma das inúmeras divindades é consagrada com vários adjetivos laudatórios. Há ainda pedidos e agradecimentos dirigidos às divindades.

A experiência Bíblica
Já o povo de IAHWEH[2] proclamou lançando por escrito a antiga tradição da história da salvação; conservou na memória as palavras dos seus profetas; compreendeu o seu destino; louvou a Deus no culto; expôs a sua situação a Ele, Senhor da Aliança, e projetou nestas preces as aspirações de cada um.

Na Bíblia o texto original do livro dos Salmos tem o título de “louvores” (em hebraico: Tehilim) e compreende 150 cânticos religiosos distribuídos em cinco “livros”. O termo “salmo”, comumente usado, deriva da septuaginta, Ψαλμὸς, e reproduz uma expressão hebraica que, segundo o seu significado original, deveria ser traduzido por “cântico acompanhado de instrumentos musicais”.

Entretanto, o saltério não contém todos os cânticos bíblicos, o cântico da profetisa Débora (Jz 5), o de Miriã, a irmã de Moisés (Ex 15,21), o cântico do Mar Vermelho (Ex 15,1-19), o cântico de Davi pela morte de Saul e Jonatas (Sm 1,19-27) e o hino da sabedoria (Pr 8). São alguns exemplos. Na sua atual compilação o saltério foi dividido em cinco livros, terminando cada um deles por uma doxologia.

O saltério canônico se desenvolveu a partir de várias coleções, num período de quase 600[3] anos. Elas foram colocadas[4] sob o nome de Davi, dos levitas cantores Asaf, Core e seus filhos. Vários textos usados na viagem a Jerusalém foram reunidos no livro dos cânticos de peregrinação. Com base nisso é possível afirmar que a comunidade pós-exílio não apenas compôs seus próprios cânticos, como também conservou e utilizou cânticos da tradição. Também fora da Bíblia foram transmitidos cânticos religiosos de Israel – em tempos mais recentes – como os salmos de Salomão e os cânticos de agradecimento de Qumran.

Um destino ou um exemplo?
Compreendendo toda essa inclusão cultural em que foram feitos os Salmos fica complicado afirmar a exclusividade dos Salmos para adoração a Deus através da música, também conhecida como salmodia exclusiva. Os cânticos e poesias encontrados no Livro dos Salmos são, na realidade, uma forma comum e cultural de expressar as verdades divinas. De forma que seguindo a interpretação neotestamentária, fica aberta a possibilidade de que novos cânticos sejam produzidos, inclusive se utilizando de ritmos e compassos contemporâneos, porque foi assim que os Salmos bíblicos foram criados. O próprio livro de Salmos sugere que se façam novos cânticos.

As metáforas e alusões com o cotidiano também não representam em si, nada realmente dispare das ocorrências bíblicas. Um exemplo da utilização do cotidiano para adorar a Deus é o Salmo 23. Davi utiliza-se de figuras e temas próprios da sua experiência pastoril, para descrever e dar forma a sua adoração. Ele utiliza a expressão “meu pastor” (יְהוָה) para posicionar-se submisso e dependente da Deus, assim como uma corsa necessita de água (Sl 42). O lugar de paz que Davi quer ir é, na verdade, a presença tranquilizadora de Deus e não as margens de um lago.

A expressão “caminhos de justiça” reconhece a sua incapacidade em viver corretamente senão pelo auxilio divino. Davi também reconhece que no acoite de Senhor existe amor e proteção. E que a correta doutrina, é livramento (v.4), mesmo quando ele andar por caminhos de trevas e morte, o inferno não prevalecerá (Mt 16;18). Por fim declarando sua confiança que a bondade e a fidelidade de Deus o seguirão – serão presentes em todo tempo – afirma que voltará constantemente a ofertar e adorar ao Senhor (v.6). Ele também traz no texto uma descrição rápida de festa, e de unção, que almeja receber de Deus na frente de seus adversários, mostrando sua vontade de ser honrado por Deus e não pelos homens.

Livros como Daniel, Isaías, Provérbios, etc. São formas literárias muito comuns. Poesias, versos parecidos com os cordéis, documentos legais. Rute e Ester são livros de romances históricos[5] como, por exemplo, “O Nome da Rosa[6]” ou o livro “Olga[7]” ou outra obra que conta uma historia real de uma determinada época. Como Apocalipse de João foram feitos muitos outros livros que trazem algumas semelhanças, pois usam a linguagem apocalíptica ou cataclísmica.

O livro de Jó é claramente uma teatralização[8], uma parábola, forma que inclusive foi muito utilizada por Jesus no N.T. Outro exemplo disso é a história contada em Oséas, que casa-se com uma prostituta, a mando de Deus, para representar a relação de Israel para com Deus. Utilizando varias figuras do cotidiano, Deus revelar-se ao profeta Jeremias. A Ceia do Senhor é uma representação pronunciativa da sua morte vicária na cruz, sua vitória sobre o Pecado e a Morte bem como de sua volta majestosa (I Co 11). Paulo utiliza-se da figura do casamento em diversas relações cristãs.

As tipologia e representações antropomórficas são formas utilizadas em toda a Bíblia como proclamação. O que é, por si só, suficiente para ‘permitir’[9] a utilização de figuras lúdicas e didáticas na exposição da verdade que é o Reino, já presente, de Deus. Mas se consideradas juntamente com todos esses aspectos culturais nos quais, e com os quais, a Bíblia Sagrada foi escrita – tal como tela, tinta e pincel nas mãos do pintor, que nesse caso é também o Deus criador – a cultura será um meio de se proclamar e ensinar as verdades cristãs. E esse entendimento da cultura é um aspecto da Adoração e marca da verdadeira Igreja (Livro IV, item X, cap. IV, IRC).
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[1] Oriente proximal, local das mais antigas civilizações.
[2] Leia o texto Israelense, Israelita, Judeu e Povo de Deus.
[3] Em face das descobertas de Qumran, já não se pode pensar que eles datem da época dos Macabeus, no século II, a.C. Qualquer tentativa de datação dos salmos é mera especulação.
[4] A autoria dos salmos atribuídos a Davi, Asaf e outros não é questão de fé. Na verdade o nome do autor deveria ser recordado muito raramente, e na maior parte dos casos caiu em esquecimento. Nos títulos foram aceitas muitas vezes tradições não críticas, formadas no decurso da transmissão e do uso dos textos. Não se pode concluir que Davi tenha sido (ou não) autor – ou o único autor – de todos aqueles salmos que trazem a informação “ledawid" (Salmo de Davi, Sl 8, 58, 60, etc), porque alguns deles pressupõe o templo de Jerusalém e o exílio de Babilônia.
[5] É importante salientar aqui que essa denominação de ‘romance histórico em nada diminui a autoridade do texto que é todo a Palavra de Deus.
[6] O livro de Umberto Eco, romancista italiano (1960). Conta a historia que William de Baskerville um monge franciscano, e Adso von Melk um noviço que o acompanha, chegam a um remoto mosteiro no norte da Itália em 1337, para participar de um conclave para decidir se a Igreja deve doar parte de suas riquezas, mas a atenção é desviada por vários assassinatos que acontecem no mosteiro. Eles começam a investigar o caso, que se mostra bastante intrincando. Sendo levados a acreditarem que é obra dos demônios. William de Baskerville não partilha desta opinião, mas antes que ele conclua as investigações Bernardo Gui (F. Murray Abraham), o Grão-Inquisidor, chega no local e está pronto para torturar qualquer suspeito de heresia que tenha cometido assassinatos em nome do Diabo. Considerando que ele não gosta de Baskerville, ele é inclinado a colocá-lo no topo da lista dos que são diabolicamente influenciados. Esta batalha, junto com uma guerra ideológica entre franciscanos e dominicanos, é travada enquanto o motivo dos assassinatos é lentamente solucionado.
[7] De Fernando de Morais que em 2000 virou filme, retrata de uma historia brasileira real dos anos 40 e dispensa comentários.
[8] A intenção do termo não é questionar a veracidade da história em seus detalhes mais sobrenaturais. É simplesmente mostrar que a maneira como tal história foi preservada é uma forma literária, conhecida hoje como novela ou peça teatral.
[9] Validar a utilização que já acontece em alguns casos na atualidade da igreja – para citar, o cinema.

Um comentário:

  1. Pr Esli, o q vc acha dos imprecatórios?
    estou preparando uma postagem sobre inerrãncia e o adventismo,e no meio do assunto surgiu isso... eu penso, que os imprecátórios, não todos, sejam expressões humanas de desabafo não necessáriamente inspiradas na boca (ainda que sejam na escrita)do servo de Deus que está sofrendo... sabe, mais ou menos como quando a mulher de Jó disse para amaldiçoar a Deus... o q acha?
    Sei que alguns eram maldições porféticas, assim seriam diferentes do que eu disse.
    abração
    mcapologetico.blogspot.com

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